Dilemas éticos da redução do homem ao animal 

Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal (RN)

 

Jean-Claude Guillebaud, em sua obra “O Princípio de Humanidade”, aborda o dilema filosófico e ético na definição da humanidade do homem, especialmente no contexto das inovações tecno-científicas que desafiam a distinção tradicional entre humanos e outras formas de vida. Este dilema surge da crescente capacidade da ciência de manipular a vida a níveis genéticos e cognitivos, levando a uma possível erosão dos critérios que historicamente definiram o que significa ser humano. 

Entre essas tendências, destaca-se a que reduz o ser humano ao nível animal e vice-versa. Com a antropomorfização dos animais, atribuímos características e emoções humanas a eles. Expressões como “meu cachorro está triste” ou “meu cachorro está alegre” ilustram essa tendência, sugerindo que podemos compreender os estados emocionais dos animais por meio de parâmetros humanos. Embora essa prática enriqueça nossa relação emocional com os animais, pode nos levar a equívocos sobre a verdadeira natureza de suas experiências e necessidades, representando uma tentativa de elevar animais ao status de humanos. Esta tentativa pode, paradoxalmente, levar a uma degradação do conceito de humanidade. 

Por outro lado, o campo da etologia demonstrou que muitos animais possuem formas de inteligência e comportamentos sociais complexos, o que desafia a antiga noção de uma distinção clara entre humanos e outros animais. Tais estudos têm alimentado argumentos a favor de uma maior consideração ética e jurídica para com os animais, levando à adoção de leis que os protegem contra maus-tratos e à discussão sobre direitos dos animais. 

A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, adotada pela UNESCO em 1978, é um exemplo de como a legislação pode refletir essa nova sensibilidade ética. Equiparar, ao menos em princípio, os direitos dos animais aos direitos humanos sugere um reconhecimento de sua senciência e dignidade. Contudo, essa equiparação também levanta questões sobre o alcance desses direitos. Animais, apesar de poderem ser beneficiários de direitos, não têm capacidades para exercer deveres, o que mantém uma distinção fundamental entre humanos e outras espécies. 

A redução do humano ao animal e a elevação do animal ao status humano colocam desafios antropológicos significativos. Se aceitamos que certos animais podem ter direitos comparáveis aos humanos, como isso redefine o conceito de humanidade? A humanidade é uma qualidade biológica, cultural, ou uma mistura de ambas? E como isso afeta nossa responsabilidade ética e nossa auto-percepção como espécie? 

Com avanços nas neurociências e genética, aprendemos que os humanos compartilham muitos traços biológicos com outras espécies, especialmente os primatas. Essas descobertas têm erodido as barreiras que historicamente colocávamos entre nós e eles. No entanto, isso também levanta questões sobre o que fundamentalmente constitui a humanidade. Se a base biológica é tão similar, o que nos faz humanos? É a cultura, a linguagem, a ética? 

A dificuldade em definir claramente o que é “humano” em uma era de avançada biotecnologia ameaça a própria fundação dos direitos humanos. Se não conseguimos articular claramente o que torna alguém “humano”, como podemos proteger esses indivíduos de abusos e explorações que são categoricamente condenados pelas sociedades modernas? 

O movimento contemporâneo em direção ao anti-humanismo e à ecologia profunda desafiam a visão antropocêntrica tradicional, propondo que os humanos não são o ápice da criação, mas apenas uma parte de um ecossistema interconectado. Por um lado, tal visão exige uma nova humildade e uma reavaliação do nosso lugar no mundo natural, promovendo uma ética que respeite mais profundamente todas as formas de vida; por outro, torna-se uma tentativa de relativizar a humanidade do homem. 

Quando reduzimos o homem ao status de animal, implicitamente negamos qualidades e capacidades que podem ser consideradas exclusivamente humanas, como a linguagem simbólica complexa, a moralidade, e a capacidade de reflexão e autotranscendência. Guillebaud alerta para o risco de uma visão puramente biológica ou etológica que, ao buscar paralelos entre humanos e animais, pode acabar desvalorizando aspectos únicos do ser humano. 

A rápida evolução da ciência e tecnologia está forçando uma reavaliação crítica da singularidade e dignidade humana, em um mundo cada vez mais propenso a desafiar essas definições. A solução não é rejeitar os avanços tecnológicos, mas sim buscar um equilíbrio que incorpore uma ética sólida, respeitando a diversidade biológica e a singularidade humana. As interações crescentes entre humanos e animais, ampliadas pela ciência, nos convidam a repensar antigos conceitos de ética e direitos, enfatizando a necessidade de tratar os animais de forma ética, ao mesmo tempo que reconhecemos as características únicas que definem a humanidade. 

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